1.4.14

O lençol - artigo onde o autor aborda questões como "democracia visual para além do ter mais ou menos pilim", "bom senso para além do ter mais ou menos direito" e "vai andando que a gente já lá vai ter... é o vais"

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Regra geral, quando alguém numa conversa sobe o tom de voz, isso significa que se estão a esgotar rapidamente os seus recursos retóricos. Se não se é capaz de mover, convencer, seduzir, pelos argumentos, então, um berro valente há-de resolver a questão.

Hoje à tarde encontrei, numa parede do bar da minha escola usada para divulgação de eventos, um cartaz que ocupava quase um terço da área útil disponível. Não era bem um cartaz, tratava-se mais de um lençol, e ao pé dos restantes cartazes, era à força bruta do dinheiro que permite produzir uma série de objetos destas dimensões que se faziam valer os seus argumentos.

"não era bem um cartaz, tratava-se mais de um lençol"

Pareceu-me despropositada e injusta a maneira como aquele objeto se relacionava com o espaço e os restantes objetos de divulgação, pela maneira como impedia uma participação democrática no discurso (publicitário no caso).
Da troca de palavras circunstancial, parecia-me haver consenso quanto ao incómodo causado pelo objeto, então, como forma de ironizar a sua ocupação desmedida do espaço (e mesmo como forma de libertar espaço para outros cartazes) comecei a sobrepor outros cartazes a esse.

"comecei a sobrepor outros cartazes a esse"

Enquanto o fazia, duma mesa recebia apoio e até sugestões de qual cartaz sobrepor e onde, mas não demorou muito para que se levantassem algumas vozes de protesto. Que raio estava eu a fazer?! Tentei explicar a minha motivação e as razões que a criavam, mas sem sucesso, o cartaz tinha “autorização” para estar ali, e eu não tinha “autorização” para alterar esse facto. Entretanto, da mesa tão efusiva recebia agora o silêncio, e em outras caras cúmplices, apenas perplexidade.
No final, senti-me derrotado pelo argumento do responsável pela exploração do bar, que me explicou ter-se comprometido na anuência à colocação do cartaz e, por isso, os cartazes teriam sempre de voltar à sua posição. Se não fosse eu a repor essa ordem inicial, teria de ser ele a fazê-lo.
Como o criminoso que é confrontado com o sofrimento das suas vítimas, não quis, por mera satisfação do ego, obrigar alguém ao trabalho de recolocar os cartazes, e assim, lá os pus eu no sítio (sim, eu não acusaria mais que uns meros 3,7 na escala de Rotten-Vicious, caso contrário tinha rasgado o cartaz ou algo assim).

"lá os pus eu no sítio"

Desta experiência fica-me a irritação de ver num espaço público de uma universidade pública esta espécie de dumping visual tão descarado. Quem tiver dinheiro para isso, pode muito bem imprimir lençóis, tão grandes quanto puder (tão grandes como o próprio território, como na história do Borges).
Mas fica-me também o azedume de, para além das pessoas que com toda a legitimidade discordaram de mim, ter havido outras para quem a questão nem se colocasse (logo que haja “autorização” não haverá problema, como se a ética e a justiça fossem função da lei e não o contrário), mas mais amargo foi o travo deixado pelas outras que, concordando com as razões ou com o gesto, não se fizeram ouvir.